A música popular brasileira teve em Luiz Gonzaga (1912-1989) um de seus mais significativos representantes no século XX. É unanimidade dizer que ele foi o maior cantador do Nordeste. Em Pernambuco, seu estado natal, é considerado um ídolo. Enfim, o velho “Lua”, apelido carinhosamente atribuído por um amigo em 1941, foi um daqueles poucos artistas incontornáveis quanto a sua contribuição para a cultura nacional. Suas canções são patrimônios incontestes. Por seu legado, ele recebeu várias homenagens pelo país: estátuas, bustos, títulos, museu, memorial, parque, ruas, praças e sites. Em Aracaju, por exemplo, temos o Gonzagão; um freqüentado espaço cultural da cidade.
Mas o “rei do Baião”, título que conquistou no auge do sucesso, além de ser homenageado por sua obra, também fez homenagens, a exemplo de Sergipe. Assim, personagens, lugares e costumes de nosso estado estão representados em algumas de suas músicas. Talvez, isto tenha sido uma forma de agradecer o carinho com que era aqui recepcionado; ou ainda se configure um indício das boas lembranças que nosso estado lhe deixara. Vejamos, então, como Sergipe comparece no cancioneiro do mestre de Exu.
Aqui, nas terras sergipenses, Luiz Gonzaga mantinha algumas amizades. Dentre elas, a de Pedro Chaves, ex-prefeito de Propriá. Para seu amigo, ele compôs “Forró de Pedro Chaves” (Luiz Gonzaga, 1967, RCA Victor). A letra narra uma festa, de “parar o comércio” com fogueira, ronqueira (arma com pólvora que detona com estrondo), zabumba, bebidas e forró na casa do Sr. Chaves, na cidade ribeirinha. Anuncia-se um típico forrobodó, baile popular, comum na zona rural do Nordeste e, especificamente, de Sergipe. Desse modo, a lembrança que traz do Pedro Chaves é seu espírito festeiro; o que muito agradava ao rei do baião que já cantara e tocara na fazenda Cabo Verde, em Própria, do seu amigo e então prefeito da cidade.
Além do político propriaense, Gonzagão - outra alcunha por ele utilizada – cantou também em ritmo de baião “Propriá” (Guio de Morais e Luiz Gonzaga, 1951, RCA Victor). Nesta música, Gonzaga manifesta a intensa saudade e o desejo de retorno à cidade. Lá, conforme a letra, ele deixara tudo de que dependia: a família, o roçado e a amada. Por isso, o baião termina assim: “a minha vida tá todinha em Propriá”.
Outra cidade sergipana, na região sob influência de Propriá, também foi cantada por mestre Lua: “Malhada dos Bois” (Luiz Gonzaga e Amâncio Cardoso, 1957, RCA Victor). Malhada fica a 82 Km de Aracaju e se tornara cidade em 1953. Segundo se sabe, Luiz Gonzaga começou a escrever sobre o pequeno povoado ainda na fazenda do já referido amigo Pedro Chaves, na zona rural de Propriá. A letra discorre sobre um convite de um enamorado à sua amada: “vamos fugir, meu amor/ para Malhada dos Bois”, lá o personagem pretendia casar e “ter filhinhos depois”.
A fuga de casais era costume praticado pelo nordestino, cujo namoro era impedido pela família da pretendida. Fugir era o primeiro passo para consumação do casamento contrariado. Certamente, a única atração da então pequena povoação sergipana seria o abrigo bucólico, próprio para casais em fuga, onde hoje ainda existem os refúgios da fonte de Itapicuru e de pontos da Mata Atlântica, cuja pastagem ou malhada para o gado bovino ainda não as extinguiu.[1]
Além de Própria e Malhada dos Bois, mais uma cidade sergipana foi evocada pelo sanfoneiro do Araripe. Trata-se de Canindé de São Francisco. A música “São Francisco de Canindé” (Julinho e Luiz Bandeira, 1977, RCA) alude à proteção do santo que, enchendo o rio, acaba com a seca no sertão, tema caro na musicografia gonzagueana. Na canção, o povo de Canindé ora com fé a pedir chuva, pois o rio virara “um deserto de pedra e pó/ a noite se avermelhou/ de tão quente o céu e o chão”. Cena tradicional nos diversos ciclos de seca por que passou o Nordeste. Mas os pedidos fervorosos de chuva aos santos são eficazes na cultura católica sertaneja. Assim, portanto, finaliza a toada: “De repente choveu bonito/ O rio encheu de fazer maré (...). Fazer bem é seu poder/ São Francisco em Canindé”. Porém, mais do que a irregularidade do tempo ou força da intervenção divina, sabe-se que a população nordestina amargou sucessivos desgovernos de órgãos e autoridades públicas que se ocuparam da seca ao longo do século XX.[2]
As três cidades sergipanas homenageadas no cancioneiro de Gonzagão ficam na região do Baixo São Francisco. Canindé, no entanto, é a mais distante da capital, a 200 Km, na micro-região do sertão sanfranciscano. Contudo, a Canindé recitada por Luiz Gonzaga não existe mais. Ela foi inundada em decorrência da construção da Usina Hidrelétrica de Xingó, em fins da década de 1980. Uma nova Canindé foi construída noutra área mais elevada, a quatro quilômetros da sede anterior. Atualmente, o município é um dos atrativos turísticos de Sergipe, justamente por oferecer, entre outras coisas, culinária ribeirinha, banhos e passeios pelos cânions e lago formado pela barragem da usina.
Entretanto, se antes a região vivia o dilema das secas, como expressa a música cantada pelo rei do baião, hoje o tema que também atormenta o Baixo São Francisco é a transposição fluvial para irrigar e abastecer zonas do Nordeste setentrional. Caso isto ocorra, conforme os adversários do projeto, nem com reza forte o rio voltará a ser vital para as populações ribeirinhas e cidades por ele abastecidas, como Aracaju.
A praia de Atalaia, um dos nossos pontos turísticos mais importantes, foi homenageada na música “Adeus Iracema” (Zé Dantas e Luiz Gonzaga, 1962, RCA Victor). A toada menciona as principais praias do Nordeste e sobre a nossa diz: “Navega [oh! Jangada]/ No Nordeste pela praia/ (...)/ Quero ver minha Atalaia”. O narrador se identifica com nosso cartão postal, tomando-o para si e demonstrando intensa saudade do paraíso sergipano.
Em meados do século XX, quando a música foi escrita, a Atalaia se anunciava como a mais nova e atraente opção de lazer e veraneio de Aracaju.[1] Pois, desde a construção da ponte velha sobre o rio Poxim em 1937, ligando a capital ao então povoado de pescadores, os aracajuanos substituíram, paulatinamente, o banho ribeirinho pelo oceânico. Isto se acentuou após a inauguração, em 1957, de uma nova ponte sobre o Poxim para ligar o balneário de Atalaia e o aeroporto Santa Maria (1958) ao centro da cidade, facilitando o acesso dos turistas que aqui aportavam. Desde então, a velha Atalaia com casas de palha, coqueirais, areias alvas, mar aberto, além de bares e restaurantes com comidas típicas sempre foi o éden de poetas e cantadores, como Luiz Gonzaga.
Quanto ao Batistão - Estádio Estadual Governador Lourival Baptista –, principal praça de esportes de Sergipe e a mais moderna do Norte/Nordeste, à época, o velho sanfoneiro gravou seu hino. Na segunda estrofe, o rei do baião entoa: “No gramado do Batistão/ Enquanto o craque chuta a bola/ As crianças dão lição/ Nosso estádio tem escola/ O estádio de Sergipe/ É o mais completo da nação/ Dá ao povo futebol/ E à infância educação”. (Hugo Costa e Luiz Gonzaga, 1969).
Além do esporte bretão, o Batistão possuía dez salas de aula para atender 1.200 (mil e duzentos) alunos em três turnos, ou seja, educação e esporte estavam presentes no mesmo sítio como atividades complementares. Hoje, as salas são ocupadas por sedes de federações de esportes. Inaugurado em 09 de julho1969, um ano antes da conquista do tri-campeonato pelo Brasil da copa mundial de futebol no México, o Batistão é um marco na história do desporto sergipano. A seleção brasileira de futebol, inclusive, participou do jogo inaugural e venceu a seleção sergipana por 8x2. Na abertura oficial da solenidade, Luiz Gonzaga cantou o hino do estádio, momento inesquecível para quem participou da festa.[2]
[1] Melins, Murillo. Aracaju romântica que vi e vivi: anos 40 e 50. 3. ed. Aracaju: Unit, 2007. p. 267-274.
[2] Especial Batistão 40 anos. Cinform. Aracaju, edição 1.369, 06 a 12 de julho de 2009.
Aracaju Magazine, Aracaju, n. 135, p. 30-35, 2010
[1] CRUZ e SILVA, Maria Lúcia Marques & MENDONÇA, J. Uchoa de. Sergipe panorâmico. 2. ed. Aracaju: Unit, 2009. p. 299-300.
[2] VILLA, Marco Antonio. Vida e morte no sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Ática, 2000.
[1] DREYFUS, Dominique. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 196.
[2] ARAGÃO, Carlos R. Britto; PRATA, W. Luiz. Propriá 200 anos: notas e fotos do bicentenário. Aracaju: Sociedade Semear, 2002. p. 66.
[1] Professor e coordenador dos cursos de Turismo do Instituto Federal de Sergipe. E-mail: acneto@infonet.com.br